Sobre a minha avó

Só conheci uma avó. A mãe da minha mãe. Ela tinha características que beiravam a estranheza. Uma em especial passava do ponto e deixava todos em situações embaraçosas e por vezes, constrangedoras: sua mania de limpeza. Mas tudo na vida tem um limite e o dela foi a história do padre.

Por conta da morte prematura da minha irmã, minha vó exagerava nos cuidados comigo. O álcool vivia em cima da mesa da cozinha. Eu ia comer, álcool nas mãos. Chegava da rua, lá vinha ela correndo com o álcool. Anos 60. Sem covid ou pandemia, aquilo era de um exagero absurdo que todos faziam vista grossa.

Claro que ela frequentava a igreja direto. Tanta limpeza poderia ser uma tentativa de expurgar pecados reais ou imaginários.

Acho que era costume na época, os padres visitarem a casa das famílias católicas, comiam bolo e conversavam sobre a saúde e a vida de todos. O padre da igreja perto de casa, nos visitou certa vez. Em algum momento eu apareço na sala, ele me dá um beijo carinhoso no rosto e eu saio gritando:

  • Vó!! Traz o álcool que o padre me beijou.

Me livrei do álcool naquele dia. Minha mãe ficou morrendo de vergonha e uma fera com ela…

Por volta dos meus dezoito anos teve a festa dos 80 anos da minha vó. Imagino que por conta da ansiedade do número que a colocava na condição de octogenária, ela não se sentiu bem à tarde e um médico foi chamado. Ele era jovem e simpático. Entrou no quarto dela e avisou que iria examiná-la. Ela pergunta de chofre:

  • O senhor já lavou as mãos?

Constrangimento geral. Mas o médico sorri, pede desculpas e licença e pergunta onde é o banheiro.

Em seguida começa a consulta. Ele vai olhando os últimos exames dela, verifica sua pressão e outros sinais vitais e finalmente pergunta o que ela estava sentindo. Ela se diz cansada, já que segundo ela, não dormia há mais de trinta anos. O médico dá uma risada e fala:

  • Vó! A senhora está muito bem para quem não dorme a tantos anos. Pressão 12x 8, taxas de sangue melhores que as minhas e uma pele lisa e corada de fazer inveja …

Ela fecha a cara. Detestou o médico. Durante anos tivemos que ouvir a reprise do filme “o médico que não lavava as mãos…”

Ninguém podia conversar na mesa. Voavam perdigotos, dizia ela. Eu nem sabia o que era isso.

Ela se blindava das dores. Um instinto de sobrevivência a fazia ignorar ou esquecer “as coisas ruins da vida”, como costumava dizer.

Ignorou durante anos o fato do meu avô ter uma filha fora do casamento que passava sempre as férias escolares conosco sem que ela nem ninguém questionasse ou estranhasse o fato. Aqueles segredos de família que só vieram à tona anos depois, quando os esqueletos saíram do armário.

Depois que a minha mãe, sua filha caçula faleceu, passou a falar com as pessoas como se só tivesse duas filhas, parecia ter apagado a minha mãe da sua memória, como se ela não tivesse existido.

Aquilo me causou um grande desconforto, na época. Hoje entendo que cada um tem a sua forma de elaborar ou negar a dor. Não a julgo. Às vezes até me assusto quando percebo que herdei essa capacidade de deletar lembranças e pessoas do meu HD.

O cabelo dela ficou branquinho como uma nuvem e ela pegou a mania de esconder balas e bombons com certa sofisticação, embrulhados cuidadosamente dentro das meias. Só usava lençóis e toalhas brancas, por motivos óbvios. Não segurava em dinheiro. Tudo era sujo.

A mania de limpeza a acompanhou durante toda a vida.

Sempre que eu chegava da rua rindo e contando novidades via os olhos dela pregados em mim até que eu fosse ao banheiro lavar as mãos, coisa que demorava a fazer de propósito.

Durante a pandemia lembrei muito dela. Imaginava como ela estaria com seus cuidados. O álcool, as máscaras e a limpeza das mãos. Tudo elevado a quinta potência.

Não por isso, ou talvez por isso, ela viveu até os quase 100 anos de idade. Sempre forte. Quase uma esfinge. Faltando poucas semanas para o seu centenário, um dia, ela simplesmente dormiu e não acordou.