O Vermelho e o Negro

Ana sai de casa atrasada, prende o cabelo de qualquer maneira, coloca uma blusa antiga, meio puída, bate a porta com força e sai para o que achava que seria só mais um dia ruim.

Entra no ônibus e senta na janela com o olhar perdido nas ruas do trajeto da Tijuca para Botafogo. Pensa na inútil aula particular de matemática que iria assistir. Sabia que nem se vivesse 100 anos conseguiria aprender frações, números compostos e coisas do gênero.

A senhora sentada ao seu lado, no corredor, se levanta e um jovem senta no lugar.

Ela percebe, olhando de rabo de olho, um livro apoiado na perna do rapaz. Lê o título: “O Vermelho e o Negro”. Fica intrigada, a capa era tão bonita.  O nome do autor a intriga ainda mais: Stendhal. Nunca ouviu falar…

 Uma freada brusca do veículo, joga o livro no chão e os dois jovens batem a cabeça no impulso comum de resgatá-lo. Enquanto se desculpam, se olham e a magia acontece.

Os minutos seguintes são aqueles mágicos. Olho no olho. Os dois sorriem sem parar. O livro era da mãe, ele explica, nem imagina do que se trata. Falam sobre várias coisas ao mesmo tempo e tudo parecia tão importante. Descobrem que o último filme que assistiram no cinema foi o mesmo. Coincidência? Ana achava que não.

 Tinha certeza de ter encontrado o grande amor da sua vida exatamente naquele dia que estava horrorosa, com o cabelo preso e uma blusa velha. Mas ele parecia não se importar com isso: a olhava com olhos brilhantes e felizes.

A conversa não esfriava e ela podia sentir seu coração batendo forte. De repente ele avisa que vai precisar saltar. Ela gela. Ele pergunta se ela tem uma caneta. Ela pega uma na bolsa e já vai rasgando uma folha do caderno, mas ele a interrompe. Pega a caneta, abre o livro na última página, anota um número de telefone e o seu nome, João.

Em seguida entrega o livro para ela que, sorrindo, pergunta:  

– Mas o livro não é de sua mãe?

Ele, também sorridente, responde:

– É para você ter certeza de que vou te encontrar para pegar o livro.

Dá um beijo no rosto dela, sorri de novo e desce apressado. O ônibus segue.

Os dias seguintes foram daquela ansiedade que só os apaixonados conhecem tão bem. Ana andava de um lado para o outro da casa e parava de tempos em tempos em frente ao telefone para ligar para o número escrito na última página do livro, que sabia agora ser um clássico da literatura francesa.  Mas chamava, chamava – e ninguém atendia.

No desespero e depois de muita insistência, recorreu até a matemática, ‘inventando’  uma  espécie de anagrama substituindo números  – na vã tentativa de conseguir falar com ele. Sem sucesso, apenas a resposta “aqui não mora ninguém com esse nome”. Voltava ao número original que chamava, chamava…  E ninguém atendia.

De tanto ficar com o livro nas mãos, um dia o abriu e começou a ler. Não era leitura fácil, mas insistiu meio arrastada até que a complexidade da trama e a dubiedade do caráter do personagem central,  Julien Sorel, a arrebatou.  Sentia algo estranho e envolvente a cada página virada do livro. Descobria um novo gênero literário: o romance psicológico.

E com um mestre, logo de cara, Stendhal. Na verdade, Marie-Henri Beyle. Stendhal era um de seus pseudônimos. O escritor não tratava o amor como algo isolado e romântico.

A sociedade do século 18, servia de pano de fundo para romances complexos com personagens cheios de sombras.  Ana parecia amadurecer um pouco a cada página. Reconhecia suas próprias fraquezas, seus pensamentos nem sempre perfeitos.

Aprendia a observar melhor o comportamento humano.

De repente, voltava ao número de telefone que já sabia de cor e que chamava, chamava e ninguém atendia. Mas Julien Sorel a puxava de volta ao livro. Andava pela casa com ele, comia com ele e dormia com ele na cabeceira da sua cama. Leu tudo.

Vez ou outra parava e tentava entender o acontecido. Fazia várias conjecturas. João teria dado o número errado de propósito? Mas por que anotar no livro? Escreveu errado sem querer? Teria acontecido alguma tragédia? Em algum momento, desistiu do número de telefone jamais atendido e a vida seguiu.

Passados  dois ou três anos, olhando para a estante um dia viu lá, imponente, o exemplar de “O Vermelho e o Negro” que agora dividia espaço com muitos outros livros. Abriu a edição com capa dura, vermelha e dourada, folheou as páginas e viu lá de novo o número de telefone que nem  lembrava mais.

 Resolveu ligar uma última vez e ele de repente fez click, de chamada atendida. Ouviu uma voz de mulher.  Sentiu seu corpo sem sangue, percebeu que aquela história ainda mexia muito com ela. Respirou fundo e perguntou pelo João. A mulher respondeu que não tinha ninguém com esse nome – naquele número.

Inconformada, Ana continuou  fazendo perguntas, a mulher  explicando que só tinha o telefone há  um ano, desde que chegou ao Rio e pediu um número à companhia telefônica.

Ana desligou e fechou o livro. Se convenceu de que não adiantava, jamais saberia o que aconteceu. Entendeu que nem todas as perguntas da vida podem ter respostas.

Só a imaginação dá conta de responder a todas elas…