A história de Leny & Walter

Aconteceu de tudo no ano de 1964. Enquanto os militares davam um golpe de Estado e o país mergulhava em uma ditadura, nos corredores do Ministério da Fazenda, no centro do Rio, uma funcionária era transferida de setor e apresentada ao seu novo chefe. Naquele momento nascia um grande amor.

A jovem mulher de 42 anos ficou desesperada. Ela era casada, mãe de três filhos, e ele era solteiro e seis anos mais jovem. Um amor proibido e impossível. A primeira reação foi negar o sentimento e fugir.

Ele se transferiu para outro departamento, saiu de férias e decidiu esquecê-la dentro de um transatlântico, em uma viagem de um mês por ilhas caribenhas. Mas desembarcou no primeiro porto e pegou um avião de volta.

Entendeu que a vida só faria sentido ao lado dela. Resolveu esperá-la, o tempo que fosse preciso. Esperou por mais de dez anos. Ninguém escolhe um sentimento assim. Acontece.

Acompanhei muito de perto todo o desenrolar dessa história de amor. Fui um personagem central em alguns momentos. Ela era a minha mãe e ele, o meu padrasto.

Em casa, vivíamos os revezes de um casamento ruim. As brigas faziam parte da rotina. E as cenas de objetos voando e portas sendo quebradas eram cada vez mais constantes.

O ano de 1965 chegou como uma bomba. Minha mãe viajou para São Paulo, mas não retornou no dia previsto. Ao invés dela, quem chegou foi minha tia. As crianças foram levadas para o quarto enquanto os adultos conversavam na sala. Deste dia, tenho registrada a imagem do meu pai abrindo a porta do quarto, chorando e dizendo:

  • Sua mãe não volta. Não aguenta mais a gente. Vocês fazem bagunça e deixam ela exausta.

As mulheres são as primeiras a sentir o impacto das ditaduras, que empoderam os algozes e fragilizam as vítimas. As dificuldades que uma mulher ainda passa nos dias de hoje eram bem piores naquela época. Havia toda uma legislação tacanha favorável sempre aos homens, sem falar no machismo impregnado na nossa cultura.

Minha mãe estava acuada. Ele ameaçava tirar a guarda dos filhos em caso de separação. Ela jamais nos abandonaria. Acabou voltando para o que foi um desastre familiar de mais de dez anos.

Dizem que as coisas não foram sempre assim. Que os primeiros anos de casamento foram bons. Nossa casa vivia repleta de amigos, parentes e vizinhos. Todo mundo era acolhido e recebido com carinho. Muita descontração e brincadeiras.

Acho que a ruptura desses bons tempos se deu a partir da morte prematura da minha irmã, de apenas três anos. A tragédia desestruturou toda a família. Fui concebida durante um período de luto e muita dor da minha mãe. Nasci um ano depois.

A expectativa de que minha chegada fosse juntar os cacos e dar um novo recomeço ao casal foi frustrada. Com o passar dos anos, as coisas só pioravam. Minha mãe seguia sua rotina de cartão de ponto, trabalho e casa, sempre com um olhar triste e distante.

Em uma tarde, por volta dos meus oito ou nove anos de idade, saímos as duas para um sorvete nas Lojas Americanas da Praça Saens Peña. De repente, chega um senhor desconhecido, que ela me apresenta como um antigo colega de repartição. Naquele dia conheci a banana split, o meu futuro padrasto e uma mãe feliz.

De noite, durante o jantar, eu contava animada quanta coisa gostosa vinha junto com três bolas diferentes de sorvete, quando sou interpelada pelo meu pai, que pergunta:

  • Vocês estavam sozinhas?

Por algum motivo respondi que sim, sem nem ter sido orientada para isso. Naquela noite, não houve briga nem discussão. Descobri o silêncio. Virei cúmplice. A partir daquele dia vieram outras tardes de sorvete.

Meu pai só veio a sair de casa e oficializar a separação quando eu já tinha meus 13 ou 14 anos de idade. Ele saiu deixando ameaças, algumas veladas e outras bem claras: mataria qualquer um que se aproximasse dela. Ele, por sua vez, se casa, formando uma nova família – inclusive tendo mais uma filha, uma meia-irmã muito querida.

Minha mãe e meu padrasto resolveram finalmente viver sua história de amor, mas praticamente escondidos em uma casa em Araruama, onde passavam os finais de semana. Enfim uma casa feliz para ela, com o companheiro, os filhos e os amigos.

Lembro dos dois dando risadas pelos cantos como dois adolescentes, caminhando pelas redondezas e fazendo amizades com os vizinhos. Um lugar que deixou muitas lembranças.

Fomos cúmplices e parceiras durante toda a vida. Choramos e rimos juntas muitas vezes, e estive ao seu lado em todos os momentos, bons e ruins.

Ela era frágil e forte, ao mesmo tempo. Tinha uma beleza clássica, de traços simétricos. Uma elegância simples e natural. Era sensitiva, espírita kardecista, enxergava a vida de forma espiritualmente evoluída. Sempre apregoou o amor e o respeito ao próximo.

Uma mulher tão interessante que fez um homem esperar por mais de dez anos. Os dois viveram uma resiliente história de amor.

Em 1977, a emenda constitucional do divórcio é finalmente aprovada. Minha mãe é uma das primeiras da fila. Ela e o meu padrasto compram um apartamento e iniciam os preparativos para se casar e morar juntos.

Enfim um final feliz para Leny & Walter.

Mas a vida interfere no curso da história. Ela descobre um câncer fatal e morre em 1980, aos 58 anos. Ele parece confirmar sua tese de que a vida só faria sentido ao lado dela: morre um ano depois, aos 53 anos.