Os Invisíveis

Não dá para lembrar ao certo o dia que ela enxergou o menino pela primeira vez. O garoto franzino, de seus doze ou treze anos de idade, tinha o hábito perigoso de descer do ônibus ainda em movimento e seguir andando pela calçada tranquilo e confiante.

Só com o tempo percebeu que o momento seguia uma espécie de ritual, uma exibição particular para ela. Ele se posicionava encostado na porta aberta, dava uma olhada para conferir sua atenção e pulava em seguida.

Para ser sincera, ela nunca sequer tinha reparado no menino. Até se espantou quando percebeu que ele usava o símbolo da sua escola no uniforme. Nunca o tinha visto.

Ela era popular. Voltava sempre para casa com um grupo animado de amigos. Ficavam, às vezes, no ponto, rindo e brincando aguardando um ônibus mais vazio. O menino ficava na espreita, observando de longe o movimento e a hora certa de entrar na mesma condução escolhida pelo grupo.

Só anos depois ela fechava os olhos e parecia ver essas imagens que na ocasião passavam completamente desapercebidas.

Um dia ela levou um susto quando se deu conta de que ele não era só da sua escola, mas da sua turma também. Mas ele não se sentava na frente com os estudiosos, nem atrás com a turma da bagunça, se acomodava em um canto quase invisível da sala.

Poucas vezes prestou realmente atenção na destreza de descer do ônibus do menino. As vezes estava sentada em um banco do outro lado, em outras dispersa em seus pensamentos. Em ocasiões, fingia não ver. Na verdade, não achava graça nenhuma naquela exibição perigosa.

O final do ano já vinha chegando e a expectativa das férias era enorme. Por alguma estranheza dessas da vida, naquele dia, ela estava feliz e atenta e quando ele olhou ela retribuiu e sorriu.

Os momentos seguintes foram de um terror absoluto. Um barulho abafado, uma freada e o motorista coloca as mãos na cabeça e desce desesperado. Os poucos passageiros que ainda restavam no ônibus também se levantam e vão até a porta. A menina os segue, já intuindo que algo de ruim tinha acontecido. Vê aterrorizada o menino caído no chão junto a um poste e muito sangue se espalhando.

Sente tonteira e vontade de vomitar.

O motorista entra novamente no ônibus e fala para o trocador:

–  Meu Deus. O menino está morto. Coloca novamente a mão na cabeça.

– Cansei de falar para ele esperar o ônibus parar… repetia em desespero o motorista que em seguida respira fundo, olha ao redor e avisa que vai precisar de testemunhas.

A menina, pálida como um fantasma, pergunta assustada se pode ir embora. Ele pede ao trocador para abrir a porta traseira para ela descer e comenta:

– É só uma criança, nem pode testemunhar nada.

A menina segue andando quase correndo até subir a sua rua e entrar em casa. Vai direto para o banheiro onde coloca para fora todo o terror da cena. Avisa que não se sente bem, não quer almoçar e se tranca no quarto.

Nunca comentou com ninguém o acontecido. Nem para a mãe que a observava preocupada. A história ficou escondida no submundo do seu cérebro. Aquele canto escuro onde guardamos nossas falhas e vergonhas. Nossas culpas. A tragédia só foi resgatada, anos depois, em uma sessão de terapia.

Uma discussão racional a eximia de qualquer responsabilidade. Mas não tirava do seu coração a sensação estranha, quase cruel, por nunca ter enxergado o menino. Só lhe retribuiu um único olhar.  O rosto dela sorrindo talvez tenha sido a última imagem que ele viu.

Não foi a aula no dia seguinte. O motivo foi um mal-estar logo aceito já que ela continuava estranha e sem cor.

No segundo dia retornou à escola, nada foi dito ou comentado. A carteira estava vazia, mas as aulas transcorreram normalmente. Foi só no terceiro dia que a diretora entrou na sala, no meio da aula de matemática, para informar, com pesar, o falecimento de um coleguinha da turma. A menina escuta o nome do menino pela primeira vez e percebe atônita a perplexidade da turma e o burburinho com uma mesma pergunta que se repetia:

– Quem é?

Um garoto lá do fundo levanta o braço e fala:

– Acho que era um menino magrinho que se sentava lá no canto da parede.

Todos na sala se entreolhavam perguntando se alguém o conhecia.  A diretora pede silêncio e avisa o dia e horário da missa de sétimo dia de José de Arimatéia.